quinta-feira, fevereiro 24, 2011
O homem que se preparava mas não vivia
Tarde de Inverno, dia frio, cinzento. Com as golas do blusão levantadas até às orelhas, para que o frio não me as fustigasse, caminhava em direcção à Gare. Sumi-me escada abaixo, nesse formigueiro urbano em que o anonimato se celebra diariamente. O Metro é frio, mas o bafo humano aquece o ar e torna-o pesado. O paradoxal do abafo da presença dos outros que é a mesma presença que aumenta a solidão por ser feita por tanta gente. Uns dormitam, miúdos gritam de joelhos nos bancos. Há árabes de turbante, chineses, pretos e brancos. Um grupo de espanhóis conversa em alto volume indiferente a quem o rodeia. Dois finlandeses, muito acima da altura média nacional, consultam um mapa de Lisboa. A rapariga dos piercings, com o cabelo rosa preto e branco, olha com saturado desdém para o muçulmano de fato e turbante. Ao fundo da carruagem uma mulher de preto de olhos vermelhos mira o negro infinito para além da janela, olhos verdes, intensos. Deve ter sido muito bela em jovem, adivinho eu sem conseguir evitar um ataque de ternura que quase me faz ir lá beijá-la. Perdeu alguém recentemente se aquilo são duas alianças... E nisto a composição detém-se, as portas abrem e no buliçoso movimento que se cria entra um homem, novo, vestido a rigor, gabardina clara e o nariz enfiado num livro. Curioso como sou detenho-me, talvez com inveja, a observá-lo. Lê compulsivamente, nem lhe vejo os olhos mas em intervalos regulares vira as páginas, quase sem tirar o nariz das folhas. Isso é que é paixão pela leitura! Não resisto e leio o título do livro "como observar as pessoas"! É um livro de Janine Driver, não conheço mas o título não deixa grande margem para dúvidas. É, portanto, motivador para aquele leitor compulsivo o tema. É tão aliciante que até já tenho vontade de ir lê-lo. O Metro continua a sua jornada, parando de dois em dois minutos para respirar como uma baleia, sai fluxo, entra fluxo. A viagem dura bem uns vinte minutos. Eu, de olho nele, de olho na carruagem, de olho nas pessoas e em especial de olho na morena alta de leggings pretos que se sentou à minha frente, sem imposturas tolas confundindo aquele tecido justo que a deixa mais despida que nua com umas pudicas calças. A viagem termina, ele levanta os olhos do livro para confirmar onde está, volta a enterrar o nariz no livro e sai da carruagem, deve ser mesmo importante esta tarefa de leitura a que religiosamente se devota. Cruzou-se com tanta gente, viveu e esteve connosco naquela viagem em que a intimidade forçada nos aproxima sem acanhamentos, e ele sem nunca erguer os olhos do livro. Um dia saberá tudo sobre como observar pessoas, poderá é já não ter olhos!
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