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quinta-feira, maio 20, 2010

Sísifo - Miguel Torga



Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances
Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
Sempre a sonhar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga

segunda-feira, maio 10, 2010

Esses olhos curiosos





Esses olhos curiosos
Que o mundo vão decifrando
São como os mares fogosos
Tão bravios quanto brandos

São como estrelas na noite,
alumiando o caminho escuro,
São lampejos de desejos
Projectados no futuro

Tudo aquilo que eu te digo
O mais que te posso dar
As coisas que eu te ensino

São histórias de encantar
Que me deram em menino
E hoje me fazem sonhar

Um olhar vale mais que mil palavras... ai é?

E um silêncio?
daqueles silêncios que são um suave enleio,
de palavras caladas mas proferidas em gestos,
e um sussurro que não é mais que vento
tocando ao de leve com o lábio na orelha.
E tudo aquilo que se diz sem dizer...
É que no teu olhar eu leio,
não o que tu escreves,
mas que eu quero ler.
Não são os olhar que enganam,
somos nós que nos enganamos neles.
Talvez seja a verdade mais crua:
Despem-te as palavras
e o olhar te deixa nua!

Nada mais inocente que um beijo...



Se há gesto que é inocente é o gesto de beijar,
aquela carícia que a gente, mesmo sem muito pensar
aprende naturalmente.

Simples e pleno de vontade, que mais tarde será desejo,
assim se tempera a ternura que cada um põe no beijo.

Rosto no rosto inocente, duas faces que se tocam,
ou bocas, lábios e línguas que num bailado se trocam.

Eu beijo desde menino, aprendi com a minha mãe,
um beijo dado com carinho é o melhor presente que se tem.

Muito começa com beijo, o beijo remata tudo,
E, quando a palavra não vem, o beijo é a forma mais elegante
de permanecer mudo!

segunda-feira, maio 03, 2010

O Fazedor de Chuva





Estava quente,

As gotas de suor corriam-te salgadas pela face

Essa tez de algodão macio e doce chocolate.

E nas tuas mãos o ferro quente, em brasa

Um movimente insistente numa ruga que não passa.


E eu, do outro lado do vidro, mirava-te

Com aquele sorriso patético que fazem os felizes.

A ayahuasca vibrou em mim, como um brado de clarim.


E de repente senti nas mãos um relâmpago que me atravessou

O coração, e na voz um grito de trovão que saiu mudo e sufocado,

Negro asfalto, passeio calcinado.


E quando, finalmente, saíste, para sanar esse calor,

Olhei para o céu e fiz chover.


Sentindo as grossas gotas que te cobriram,

Aproximei-me de ti e. olhando-te nos olhos, toquei ao de leve

Na madeixa negra dos teus cabelos molhados.


E os meus dedos transformaram-se, por magia,

na carícia suave de um desejo que fica sempre por satisfazer.